domingo, 29 de junho de 2025

O poço da tirania e outras fábulas

Era uma vez um reino distante, no qual uma bondosa rainha só pensava no bem de seu povo e era por este admirada. Nada parecia perturbar aquela felicidade. Uma dia, porém, uma bruxa ressentida que passava por ali jogou uma poção mágica na nascente que alimentava a rede de poços da próspera nação.

O efeito foi imediato, aquelas pessoas, antes tão gentis, bebiam a água dos poços e se transformavam em tiranos que tentavam impor suas opiniões aos demais. Ao tomar conhecimento do que estava acontecendo, a rainha e seus ministros tentaram salvar seus súditos: "Não bebam dessa água, a rede está envenenada!"

Mas não adiantava, cada vez mais gente bebia, mergulhando o reino numa loucura em que todos queriam mandar em todos. Ninguém dava atenção aos alertas da preocupada monarca e, ao contrário, viam-na agora como uma inimiga que tentava retirar-lhes o que pensavam ser seu direito de tiranizar os demais. 

Desesperada ao verificar que seus esforços para quebrar o feitiço eram em vão, a rainha tomou um decisão radical: bebeu da água contaminada e se transformou também numa tirana. E então o povo festejou reino afora: "Viva, viva! Nossa amada rainha voltou ao normal!" 

Nota ao pé da página

Pode ser uma lenda, mas dizem que, ao final do manuscrito em que foram originalmente registrados esses fatos, encontra-se a seguinte observação: 

"Na verdade o pessoal ficou pê da vida porque a tirania de antes, exclusiva dos súditos, ficava só nas palavras; mas a da rainha, que podia mandar prender e mandar soltar, era literalmente real. O humilde cronista que lhes narrou essa história só a encerrou assim para não passar 17 anos no calabouço do palácio."

Corrida na floresta

No tempo em que os animais votavam, a lebre desafiou a tartaruga para uma corrida eleitoral. Baseados nas pesquisas que mediam suas velocidades, todos acharam que a tartaruga recusaria o desafio. Mas ela o aceitou mediante uma única condição: "Quero que os juízes da prova sejam o veado e o urubu." 

No dia acertado, os contendores já estavam em seu lugares quando os juízes argumentaram que, para tornar a disputa um pouco mais parelha, a lebre só poderia partir depois que a tartaruga chegasse à metade do caminho. E como os outros animais acharam isso justo, a lebre, confiante, aceitou a nova condição.

Lá se foi a tartaruga. Chegou à metade do percurso, completou 60% dele, depois 70, 80, 90... e nada da lebre aparecer. Foi só quando ela já estava cruzando a reta de chegada que a lebre surgiu ao longe, gritando desesperada: "Me roubaram, me roubaram, o veado e o urubu só me deixaram partir quando era tarde demais." 

Sabendo que ela não tinha provas do que dizia, o veado e o urubu se disseram vítimas de suas fake news e a processaram e condenaram - eles faziam tudo - por ameaça ao equilíbrio ecológico da floresta. Depois vestiram seus trajes de gala e foram ao banquete da vitória da tartaruga, onde beberam e gargalharam até o dia amanhecer.

Só isso?

Sei, sei, o título prometeu outras fábulas e só teve mais uma. É que enquanto escrevíamos nos informaram que seria melhor evitar o excesso de pluralidade, pois quanto mais se fala mais se corre o risco de confundir liberdade de expressão, que continua assegurada, com liberdade de agressão, que está proibida como deve ser. 

Vamos atender, é claro. Nada como ter gente que cuida de nós.


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