quinta-feira, 3 de abril de 2025

Feitiço quebrado

A luz difusa das velas mal permitia ver os oficiantes encapuzados e os pentagramas invertidos nas paredes e no chão. A oferenda havia sido realizada. Seguindo as regras milenares, o condutor da cerimônia alertou-o para o compromisso que estava assumindo e pediu sua anuência pela última vez:

- Você conseguirá enganar quase todos, nossos adeptos na imprensa, na política e na academia o auxiliarão. Mas suas vilezas permanecerão guardadas em segredo, e após o prazo do contrato todos os que foram iludidos as verão. Será mais ou menos como a história do retrato de Dorian Gray, compreende? 

-  Eu não entendi a parte da Doris Day, mas o resto tá tranquilo. Sessenta anos ganhando dinheiro e poder está bom demais, quando o prazo acabar eu já vou ser um daqueles velhinhos de quase 80 que só quer tomar papinha e dormir.

- Cuidado, quando a gente é jovem pensa assim, mas conforme o tempo vai passando se vê que a coisa é diferente. Alguém apegado às vantagens materiais como você ainda pode nutrir ambições numa idade tardia.

- Não, isso não me assusta. Minha única preocupação era que não aceitassem meu sacrifício de sangue, mas parece que foi tudo bem.

- Confesso que alguém ofertar um pedaço do próprio mindinho foi inédito, mas o Mestre disse que a esperteza comprovava sua índole satânica e mandou aceitar, tudo bem. Quando chegar ao poder você compensa o bebê que faltou agora liberando o aborto com nove meses de gestação.

- Então tá chuchu beleza, vamos concluir logo isso que eu não aguento mais precisar ficar roubando moedinha da gaveta do sindicato. Depois, se o senhor quiser comemorar comigo, a gente pode tomar uma cervejinha e comer aquela picanha com gordurinha na farofa. Tudo por minha conta.  

- Melhor não. Mas esse é o espírito, todos vão acreditar quando você mentir desse jeito. Só não esqueça do prazo de sessenta anos.

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Nas décadas seguintes, tudo transcorreu como previsto. No início, poucos conseguiam ver o ser abjeto que se apresentava disfarçado de humilde trabalhador. Ele se tornou poderoso, ficou riquíssimo com suas falcatruas, em determinada época quase conseguiu enganar a nível internacional. Também foi ganhando inimigos, muitos deixaram de ser afetados pelo feitiço, mas ele ainda iludia multidões. 

Então, um dia, aconteceu, o prazo do pacto estourou. O encanto se quebrou, quanto mais ele aparecia e apelava para os antigos truques, mais o detestavam. Ele não sabia o que fazer. Como era de seu feitio, decidiu culpar alguém:

- Isso deve ser mandinga daquela filha da puta da Doris Day.

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