sábado, 18 de janeiro de 2025

Reflexões pré-momescas

Encontraram-se no bloco de rua do pré-Carnaval. Trocaram olhares, se aproximaram, dançaram, se abraçaram, se beijaram. Na sua casa ou na minha? Decidiram ir para o apartamento dela, próximo dali. Caminharam de mãos dadas na noite agradável, o porteiro os cumprimentou sorridente.

Observando-se no espelho do fundo do elevador, ela constatou:

- Olha que casal maravilhosamente harmônico nós formamos, amor; eu de feiticeira, com chapéu bicudo e varinha para lançar encantamentos; você um vampiro perfeito, com capa de fundo vermelho e tudo aquilo a que o personagem tem direito. 

Ele só anuiu levemente com a cabeça, mas ela não se importou porque já haviam chegado ao seu andar e queria deixá-lo à vontade. Abriu a janela, sugeriu-lhe que apreciasse a vista panorâmica, mostrou-lhe onde estavam as bebidas, disse-lhe que voltaria em um instante.

Voltou minutos depois, com a indumentária de bruxa substituída por um diminuto babydoll. Surpresa por encontrá-lo exatamente como o havia deixado, com a mesma roupa no mesmo lugar, abraçou-o para sussurrar em seu ouvido:

- Você não prefere tirar essa fantasia?

- Que fantasia?

- Ora que fantasia - deu um passo atrás para mirá-lo com olhar divertido e as mãos na cintura -; essa que você está usando, de vampiro. 

- Não é fantasia, eu sou um vampiro.

- Hahahaha, você é mesmo ótimo, que demais! Mas você esqueceu de uma coisa, espertinho: eu sei que você não pode ser um vampiro.

- Por que não?

- Porque eu vi seu reflexo no espelho do elevador - disse com ar vitorioso - e todo mundo sabe que os vampiros não têm reflexo.

- Não, não, esse é um mal-entendido propagado pelos camponeses da Transilvânia. Nós sempre comentamos entre nós que somos muito impulsivos, não medimos as consequências de nossos atos, somos irrefletidos. Um dia um deles escapou e contou isso aos outros, que, em sua ignorância, só conseguiram entender "irrefletido" como sinônimo do que não aparece em um espelho. 

Ela começou a ficar sem saber se devia continuar a sorrir ou não. Ele emendou:

- Veja o meu caso. As ruas em que nós passamos são filmadas, seu elevador é filmado. Seu porteiro me viu. Muitas pessoas nos viram juntos e você é famosa, só foi eliminada no penúltimo paredão do BBB e tem conta no Onlyfans. Todos vão saber que fui eu. Mesmo assim eu não consigo me controlar e só sairei daqui depois de beber a última gota de seu sangue.

- Ai, amor, para com isso, assim você está me deixando assust...

Não conseguiu concluir a frase porque ele pulou com a rapidez dos vampiros e cravou os dentes em seu pescoço. Ela debateu-se como pôde, virou cadeiras, quebrou a cristaleira, tentou arranhá-lo. Mas foi tudo inútil. Como havia previsto, ele não a largou até deixá-la completamente exangue. 

Foi só então que prestou atenção à baderna à sua volta. O cadáver no chão, móveis virados. Sangue para todos os lados, inclusive em suas pegadas e impressões digitais. Não bastassem as câmeras deste século maldito, ele havia deixado pistas que fariam a alegria de qualquer perito criminal.

Porém não havia jeito, era a antiga compulsão dos da sua espécie. Meditou um pouco sobre sua sina junto à janela, olhando distraidamente as luzes da grande cidade e ouvindo a bandinha do bloco que tocava ao longe. Mas logo se recompôs. Transformou-se em morcego e saiu voando noite afora. 


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