quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Anônimos

"E pur si muove", teria dito Galileu logo após negar oficialmente sua crença de que a Terra se move em torno do Sol. Disse baixinho, para os juízes do Santo Ofício não escutarem. E naquela noite, tomando um vinho com os amigos em casa, acrescentou: "melhor uma arregadinha que pegar prisão perpétua".

Mais de três séculos depois, o Pasquim entrevistou o jornalista Carlinhos de Oliveira, figura folclórica da época. Regime militar, ele convivia com intelectuais esquerdistas, muitos dos quais ligados a grupos "subversivos". Perguntado se não tinha medo de ser preso, talvez até torturado, Carlinhos respondeu mais ou menos o seguinte:

- Nenhum, se me prenderem eu conto tudo de uma vez. Quem me conhece já sabe que não pode me revelar nenhum segredo porque se me pegarem eu falo mesmo, não vou ficar preso e apanhando de graça.

São exemplos um pouco diferentes de uma atitude que é basicamente a mesma. E que seria provavelmente a minha em situação semelhante. Entre contar uma mentirinha para agradar o juiz injusto e mofar num calabouço, eu não me envergonho (não muito) de admitir que escolheria a primeira opção.

Mas nem por isso eu deixo de admirar quem segue o outro caminho e troca o pequeno incômodo moral por um sofrimento físico muito maior. Acho que quase todo mundo admira, dá para imaginar que Galileu seria ainda mais louvado hoje em dia caso tivesse se martirizado pelo que sabia ser verdade.

Talvez ele, que já era relativamente famoso, até tenha pensado nisso, "morro, mas meu nome ficará na história" (e suas variações) é um pensamento que já moveu muita gente boa. O que dizer, porém, de quem toma a mesma atitude sem ter nenhuma esperança de ser reconhecido pelos pósteros?

Esse é o caso de doze brasileiros que não aceitaram o acordo em que se assumiriam como "golpistas" e foram ontem condenados à prisão pelos ministros tucanopetistas do STF. A imprensa noticia isso num cantinho e fala deles assim, apenas no plural. São doze quaisquer, doze anônimos.

Claro que para eles é diferente. Cada um é José, João, Maria, tem um filho que pode passar dificuldades sem a sua presença, uma mãe que vai acordar no meio da noite com o coração apertado e mil coisas semelhantes. Que eles estendam seu sacrifício aos que os amam o torna ainda mais dramático e merecedor de respeito.

Mais que isso, mostra o abismo moral que os separa do juiz que sabe estar atropelando a lei com seu palavrório vazio, do jornalista desonesto que finge não estar vendo isso, do político ladrão que acoberta a ambos e do lixo humano que, embora também anônimo, zomba de seus sofrimentos e apoia seus algozes com palavras e votos.


Observação: O título é Anônimos e as máscaras acabaram sendo associadas ao grupo de hackers que usa esse nome. Mas não confunda as coisas, o nome do filme do qual foi retirada a imagem acima é V de Vingança.


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