terça-feira, 10 de setembro de 2024

Eu falei, eu falei

Um futuro cavernoso em que os bem-pensantes não mais governarão, mas serão governados por fanáticos seguidores de seitas exóticas ancoradas num passado distante. Não é filme de ficção científica dos anos 50, é o que Merdal Pereira teme que esteja à nossa espera em sua coluna de hoje em O Globo.

Seus fanáticos chamam-se "evangélicos", mas o perigo é o mesmo. Segundo o colunista, corremos o risco de ter uma religião oficial - já temos informalmente porque nenhum político se arrisca a contrariar o eleitorado evangélico -, acabando com os direitos das outras e a laicidade do Estado. Veja como termina seu artigo:

Já estamos quase num ponto de não retorno, com igrejas usadas como palanques e locais de reunião pública. A ascensão da extrema direita com o uso da religião ameaça a todos. A exploração dos precarizados com políticas de apelo populista, acrescida do uso da religião como instrumento de obtenção de votos, é uma mistura explosiva, que tem de ser contida enquanto há tempo.

Pois é, Merdal, não é só uma TV desonesta e um sindicalista picareta subordinado ao grande capital que podem explorar os precarizados. E é uma pena que você termine sem nos contar como acredita que a mistura explosiva deve ser contida. Tenho certeza que veríamos um raciocínio tão brilhante quanto os que você utiliza para falar do roubo das joias ou do golpe das velhinhas.

Na Folha de ontem, Juliano Spyer tratou de tema similar. Para ele, Pablo Marçal é osso duro de roer por reunir "a mensagem pentecostal antissistema, de quem é perseguido por seguir o chamado de Deus", a defesa da família e "o combate ao comunismo, visto como doutrina que escraviza o pobre à sua condição de dependência". Bater nele significa bater no próprio sonho de progresso individual.

Pois é, Luciano, mas não é verdade? O comunismo e quem está por trás dele trata o pobre como gado, tenta matar o sonho das pessoas, retirar a sua fé. E esta palavra não é usada aqui por acaso, mas porque embora estejamos falando de temas políticos e materiais, trata-se no fundo de uma questão espiritual. A conexão não é forçada como julga o Merdal, é tão natural que nem precisa ser muito explicada.

Na Folha de hoje, Joel Silveira comenta o artigo do Spyer e observa que a direita brasileira é mais fiel aos seus valores do que a líderes como o próprio Bolsonaro. A esquerda, ao invés, idolatra seu único líder acima de tudo. A primeira se aproxima das igrejas pentecostais descentralizadas, a segunda do catolicismo com seu papa.

A gente disse

Modéstia à parte, o que tem aí acima que já não tenhamos dito? Desde o começo afirmamos que esta época será no futuro lembrada como a da chegada dos evangélicos à política. O padre católico é um funcionário estatal, o pastor evangélico é um self-made man que defende a livre iniciativa (e a direita) ao natural com seu próprio exemplo. Bolsonaro parece uma pessoa e o PT um partido, mas na prática é o contrário. E assim por diante, tudo o que eles estão descobrindo a gente já sabia.

Como é que nós conhecemos o "julgamento da história" melhor do que eles sem ter participado de um único seminário com os grandes intelectuais das nossas ciências sociais ou lido suas obras completas?

Ah, fácil, é só pagar um cafezinho para o João Carlos e o Aderbal cada vez que eles passam por aqui. Mas se você não conhece nenhum viajante do tempo e nem gosta de ficção científica dos anos 50, não tem problema. Basta tomar o cafezinho e ficar prestando atenção nos frequentadores do boteco. O problema do Merdal é que ele só toma chá na academia.

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