sábado, 27 de maio de 2023

A legitimação da autopercepção

Com sua essência reproduzida abaixo, o artigo que Luciano Trigo escreveu recentemente para a Gazeta do Povo foi solenemente editado e resumido por este que vos fala. Como qualquer outro vício, ter passado a infância lendo Seleções do Reader's Digest cobra seu preço conforme a gente vai se aproximando da outra ponta da linha.

As valiosas promessas da agenda identitária

Com fortíssimo apoio dos grandes grupos de comunicação e financiamento milionário dos metacapitalistas – até outro dia considerados seus inimigos de classe –, a esquerda global se identifica cada vez mais com a agenda identitária.

É natural que a bandeira da revolução perca valor à medida que mesmo os jovens progressistas mais alienados entendem que é o capitalismo que gera muitos confortos de que eles usufruem – incluindo os smartphones que usam para lacrar nas redes sociais. Mas o que leva uma pessoa comum, que se considera honestamente socialista, a se aliar, sem qualquer cerimônia ou desconforto moral, aos seus antigos inimigos?

Colocado de outra maneira: o que o militante comum ganha com isso? Que vantagens ele julga estar levando?

Ainda que presente em muitos casos, a motivação financeira não pode ser considerada o fator primordial. Uma resposta possível é que aquilo que está sendo oferecido como isca aos que se julgam de esquerda é algo mais valioso que a promessa de uma incerta revolução futura, que um dia criaria um paraíso de igualdade. Esse tesouro não está em um futuro longínquo, mas ao alcance de qualquer um que aceite fazer o pacto fáustico proposto pelas elites interessadas no congelamento do poder.

Trata-se da legitimação da autopercepção. Ser progressista hoje é, em primeiro lugar, acreditar – e obrigar os outros a acreditarem também – que eu sou aquilo que eu quiser ser. E, em segundo lugar, afirmar ter direitos especiais por pertencer a um determinado grupo, mesmo que a Constituição determine que todos são iguais perante a lei ("todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros"). Ora, o que pode haver de mais valioso que a possibilidade, socialmente legitimada, de eu me tornar tudo aquilo que eu quiser por mero ato de vontade, pela mera afirmação de ser aquilo em que eu quero me transformar? Ou de ter direitos diferenciados pelo simples acaso de ser quem eu sou? Pois é isto que está sendo vendido quando nos ensinam que é uma hegemonia opressora que determina o que somos, que são construções culturais criminosas as responsáveis por todos os nossos problemas; quando nos dizem que todos os que pertencemos a alguma minoria somos vítimas – e que, na condição de vítimas, temos direito a compensações e tratamentos diferenciados, inclusive pela lei. Porque a nossa visão de justiça social não é um mundo de harmonia, como aliás prometia Marx com certa ingenuidade. A harmonia não tem graça, o nosso objetivo é trocar de lugar com o opressor. A luta não é pela igualdade de oportunidades, é pela garantia de resultados. Ora, se meu próprio sexo é uma construção que nada tem a ver com a biologia ou a genética, se eu posso me reinventar da forma que eu quiser, adotar a identidade que me der na telha (e ai de quem discordar), quais são os limites para a minha realização pessoal? Se eu tenho a desculpa da vitimização para explicar e justificar todas as minhas falhas, e se todos os meus problemas são decorrentes de uma estrutura social injusta, se eu tenho o direito de apontar o dedo para os outros, de cancelar e perseguir todos os meus desafetos e de fazer do ressentimento a minha razão de viver, que preço pode ser considerado muito alto? Ora, deixem as elites em paz, meu inimigo agora é o fascista pobre que vai à igreja e defende a família, que horror! Leio, por exemplo, que surgiu um novo grupo identitário: os transcapacitados, pessoas que se percebem como tendo algum tipo de deficiência – o que as leva, em muitos casos, à automutilação. Pouco tempo atrás, isso era chamado de “transtorno de identidade de integridade corporal”, uma patologia que gera um descompasso entre o corpo físico e sua autopercepção pela mente.

Hoje, em lugar de tratamento, os transcapacitados pedem reconhecimento como minoria, ou seja: nada relacionado à identidade pode ser considerado um transtorno, já que todas as identidades têm direito à existência e a um lugar na sociedade.

Já se cobra, também, respeito à “neurodiversidade”, conceito segundo o qual “as condições neurológicas diversas dos indivíduos são normais no genoma da espécie humana” e, por isso, “não devemos observar pessoas com funcionamento neurocognitivo diverso como doentes ou incapacitadas”. Em outras palavras, se a legitimação da autopercepção é tão valiosa, é porque ela oferece um sentido em troca do qual vale qualquer concessão ideológica. Se me é dada a prerrogativa da superioridade moral em relação aos demais, se me é dado o direito de odiar em nome do amor, de perseguir em nome da justiça e de censurar em nome da liberdade, o que mais posso querer na vida?


Nenhum comentário:

Postar um comentário