sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Bonzo imolado

Foi há 60 anos, naquele tempo antigo em que alguns ocupantes do poder se achavam no direito de censurar e oprimir quem não compartilhasse de suas crenças. Oito anos antes, em 1955, Ngo Dihn Diem havia se tornado o primeiro presidente do Vietnã do Sul e declarado o país como devoto da Igreja Católica.

Isso já seria uma sacanagem com as minorias se os sul-vietnamitas fossem majoritariamente católicos. Mas entre 70 e 90% da população se considerava budista - o percentual exato não pode ser conhecido porque, por incrível que isto pareça hoje em dia, os institutos de pesquisa do passado falsificavam seus resultados.

Você andava na rua e só encontrava budistas. Enquanto estes realizavam eventos que podiam reunir milhões de pessoas, os católicos não juntavam mais que algumas centenas que precisavam ser protegidas por tapumes. Se fizessem uma eleição para escolher religião, os católicos só a venceriam se as urnas fosse fraudadas.

E aqui é necessário recordar que naquela época distante as eleições podiam ser fraudadas. Ainda não existiam os sistemas de votação exclusivamente eletrônicos que assombram o mundo em eventos internacionais. Nem o vizinho Butão, com todo seu pioneirismo, os utilizava.

Contando com isso, o presidente deixado pelos franceses impôs sua religião ao país. Quem não gostasse podia ir em cana e até desaparecer na prisão. E embora o povo se revoltasse com esse autoritarismo, a imprensa, que não era profissional e honesta como a de hoje, dizia que estava tudo bem.

Detendo arbitrariamente uns e comprando outros - ele nunca chegou a ser condenado por isto, mas era tão corrupto quanto alguns presidiários - Ngo passou a acreditar que não tinha limites e conseguiria acabar com o budismo vietnamita através de medidas crescentemente discriminatórias.

Assim, em maio de 1963, dias depois de uma cerimônia pública oficial expor cruzes cristãs, o governo proibiu que os budistas utilizassem suas bandeiras durante a tradicional comemoração do aniversário de Buda.

Uma primeira revolta explodiu e a polícia de Ngo a resolveu atirando na população e matando vários civis. Os bonzos, monges budistas, solicitaram que as proibições fossem revistas e os responsáveis pelas mortes punidos, mas o presidente não lhes deu atenção e, ao contrário, aumentou a repressão.

Foi então que surgiu a cena da foto acima, que ficou famosa e ganhou vários prêmios. Cerca de 300 bonzos saíram às ruas de Saigon e um deles, Thích Quang Dúc, praticou a autoimolação, sentando-se calmamente em posição de meditação e colocando fogo no próprio corpo encharcado de gasolina.

Thích é lembrado por ser o primeiro. Mas não foi o único. Nos meses seguintes, levando as tensões ao auge, outros bonzos se imolaram. E, em novembro, atendendo ao clamor da população oprimida, oficiais revoltados derrubaram o ditador, que tentou fugir e acabou sendo executado por um capitão.

E foi assim que o golpe aconteceu.


PS (editado) - Nossa imprensa, mais eficiente que a do Ngo Dihn Diem, escondeu quase tudo sobre o senhor de 58 anos que se imolou em Brasília para protestar contra o que acontece hoje no país. Vi agora, por aí, na parte não censurada das redes, que ele se chamava Alexandre Leite de Andrade e era de Botucatu. Nossos respeitos à família.


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