Imagine que fosse aí por 1570. Você apresentaria um projeto de captação de recursos para publicar um poema épico destinado a louvar as conquistas nacionais em 10 cantos, com um total de 8816 versos decassílabos, distribuídos em 1102 estrofes, compostas em oitava rima com esquema rítmico ABABABCC.
Seu projeto seria recusado sob a alegação de que trata de temas históricos, não culturais. Ou de que o autor não tem um currículo de produções culturais anteriores. Ou por outro motivo qualquer. Se a Lei Rouanet da época funcionasse como a de hoje, jamais aprovaria a solicitação do tal Luís Camões.
Mas se ele saísse de casa, reunisse as mocinhas que dançavam o vira com roupas típicas na pracinha do povoado e se propusesse a realizar um festival voltado para os folguedos típicos de sua região, poderia ser autorizado a captar quantos escudos desejasse.
Esse é o primeiro problema desses incentivos. Cultura para os que os gerenciam não envolve jamais as possibilidades mais elevadas do termo, é quase sempre dancinha, entretenimento, diversão popular. Se o projeto não tiver potencial para virar atração do Faustão, pode esquecer.
O segundo problema é que até haveria alguma lógica em estabelecer certos limites e financiar quem está começando ou tentando fazer algo inovador. Se não der certo, o dinheiro está mesmo perdido. Mas eles invertem a coisa e tendem a só bancar quem está no ramo há algum tempo e já deveria ser capaz de se virar sem incentivo algum.
E isso está ligado ao terceiro problema, que é a máfia que tomou conta do setor. Esses projetos já contemplam um percentual para quem os intermedia e existem empresas que passaram a viver disso. Tanto para aprovar um projeto como para captar os recursos por ele autorizados, contar com esse tipo de assessoria é quase fundamental.
No nível mais alto desse esquema, a coisa é ainda pior. As grandes empresas, que têm muitos impostos a pagar, perceberam que poderiam usar parte deles para fazer propaganda de graça, se apresentando ao público como simpáticos patrocinadores de "eventos culturais".
Claro que para essa gente só interessa projetos caros, que atraiam muito público ou muita mídia. Para selecioná-los, muitos criaram diretorias relacionadas ao assunto, geralmente compostas apenas pelo diretor e alguns poucos funcionários que circulam pelo mundo "artístico" como os olheiros de futebol pelos campinhos de várzea.
Do lado do governo, os projetos são analisados preliminarmente por uma equipe pretensamente técnica, mas, passando por esse filtro, precisam ser ao final aprovados por uma espécie de "comissão de notáveis", cujos membros são periodicamente trocados.
E é aí que acontece uma coincidência fantástica, pois os diretores-olheiros das grandes empresas também são substituídos de vez em quando. E enquanto muitos deixam o cargo para logo depois fazer parte dos notáveis, outros trilham o caminho inverso, num troca-troca que assegura a felicidade geral.
Em resumo, Cláudia Raia não terá dificuldade alguma para arrumar os milhões que foi autorizada a captar.
Continuamos apoiando
Talvez nossos leitores do MBL pensem que nós estamos utilizando o tema de hoje para atacar o seu presidenciável, Danilo Gentili, que já se utilizou de leis de "incentivo cultural" para realizar pelo menos um filme.
Fiquem tranquilos, aqui ninguém vai se prender a fatos isolados para dizer que anulará o voto porque não existe diferença entre ele e o PT. Ninguém é menininho mimado que só aceita o que está exatamente de acordo com seus desejos nem idiota para ser manipulado e utilizado como linha auxiliar do lulopetismo.
Não se preocupem. Se ele chegar ao segundo turno de 2026 contra o PT, todos aqui votarão no Gentili.
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