Não deixa de ser curioso que, oriundos de uma linha de pensamento que pretendia explicar o mundo a partir de padrões desenvolvidos desde a origem da família, da propriedade privada e do estado, os esquerdistas de hoje em dia pareçam se comportar como se nada existisse de uns cem anos para trás.
Eles não recuam para além desse período quando tentam encaixar as situações que os desagradam em algum modelo do passado. Bolsonaro está agindo como Mussolini, Trump é igual a Hitler, os movimentos conservadores que crescem mundo afora possuem uma índole nazista ou fascista, é sempre por aí.
Em função disso, acabam concluindo que as pessoas estão sendo levadas a agir contra seus próprios interesses por forças malignas cuja origem não conseguem identificar com precisão - o que levaria o frentista a esquecer sua classe e se aliar ao dono do posto que o explora?
Mas eles poderiam fazer uma comparação um pouquinho melhor se recuassem mais um século e pouco e chegassem à França anterior à Revolução, aquela em que dois estados - nobreza e clero - tocavam a música e o terceiro estado - que incluía o frentista e o dono do posto da época - carregava o piano sem muito direito a reclamar.
Claro que a coisa não era tão arrumadinha assim. O comerciante de sucesso podia se tornar nobre, existia a alta e a baixa nobreza, o cura da aldeia estava mais próximo da choupana do aldeão que do palácio do bispo, girondinos discordavam dos jacobinos e tudo o mais que se estudou na escola.
Hoje a mobilidade é ainda maior. Mas dá para reconhecer algo próximo do terceiro estado gritando nas ruas da internet. E é possível dividir os dois estados privilegiados de modo diferente, numa espécie de alta e baixa nobreza.
A alta é aquela que continuaria se dando bem caso o povo derrubasse a Bastilha, mas, por motivos econômicos ou psicológicos, prefere manter a antiga ordem. Mais reservada, inclui personagens típicos como o herdeiro com consciência social que mantém o jornal e adora a vassalagem que lhe é habitualmente prestada pela baixa.
Esta é a que mais se apavora com agitação do terceiro estado, que não respeita seus títulos nobiliárquicos e ameaça suas fontes de renda. Nessa turma encontram-se tipos como o colunista do jornal, o "intelectual de esquerda" (uma espécie de baronete) e até o leitor que o copia para também se sentir intelectual.
O terceiro estado é mais numeroso, porém, como sempre, nem todos votam com sua classe. Nunca saberemos porque a bomba estourou antes, mas, se tivessem feito uma eleição aberta a todos naquela época, não seria impossível que muitos camponeses fossem levados a votar no rei e tudo continuasse como era.
Por aqui, a alta e a baixa nobreza até aceitam o sufrágio universal... desde que as urnas sejam inteiramente controlada por elas. E nos últimos dias ambas estão muito satisfeitas consigo mesmas, pois conseguiram se unir para fazer um abaixo-assinado contra os selvagens do terceiro estado.
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