quarta-feira, 6 de julho de 2022

Meu lar, meu castelo

No chá bolado pelo publicitário para medir a reação do público, as donas de casa que responderam ao convite do jornal preferiram os panos de prato com gravuras de Picasso. Elas não deram seus nomes, sabiam que não seriam identificadas, ninguém as pressionou. Não havia motivo para mentirem.

Na loja, porém, só o que vendeu foram os panos com desenho de casinha com chaminé e criança vendo a vovó fazer bolo. Décadas depois, as bisnetas daquelas senhoras haviam se tornado moças modernas que não mais admitiam certos comportamentos masculinos. Mas a fila que dobrou o quarteirão foi a do "50 Tons de Cinza".

É assim para homens e mulheres, quase todos mostram uma face social que não corresponde com exatidão ao que pensam, mas ao que julgam que o ambiente exige. Preste atenção no que as pessoas colocam seu dinheiro, não no que elas dizem apreciar; foi a lição prática que o publicitário dos panos de prato tirou do episódio.

Pois quase cinco milhões de brasileiros pagam entre 25 e 50 reais mensais para assistir um canal especializado em k-dramas, ou doramas, novelas coreanas caracterizadas pelo pequeno número de capítulos e uma temática que a Foice chama de conservadora, aquela coisa de homem beijar mulher e o primeiro beijo coincidir com o The End.

E não pense que o público é formado por vovós que querem passar o tempo enquanto o bolo assa. As assinaturas crescem (65% nos últimos dois anos) principalmente entre o pessoal mais jovem, de adolescentes a quem tem até 40 anos.

Sinais

Os sinais estão menos no evento que na compra da loja, menos nos longos artigos que em alguns breves comentários. Segue um destes, copiado na íntegra:

Boa tarde Professor. Sou de uma cidade do interior de Goiás e que representa bem esse Brasil Agro, o Brasil profundo de que tanto fala. Tenho notado que você defende muito que a grande mídia faz de tudo para esconder as verdadeiras pautas econômicas, e que essas seriam o "calcanhar de Aquiles" do Bolsonaro. No entanto, em várias conversas com "bolsonaritas", quando você os coloca contra a parede e os deixam sem respostas para os problemas econômicos que vivemos, eles sempre se voltam para as pautas de costumes. Tenho a impressão de que no fundo essas pautas de costumes ainda pesam mais do que as econômicas para esse núcleo duro (e que acaba puxando outros tantos, principalmente membros de suas famílias, para o seu lado a partir do uso de "fake news"), mas que só é assumido somente quando eles ficam pressionados. E como se ficassem envergonhados de assumir isso como primeira estratégia de convencimento. O que você acha disso? Alguém mais tem essa mesma impressão?

Vamos repetir, 12% dos eleitores brasileiros trabalham diretamente no agro. Com mais um familiar por cabeça se chega a um quarto do eleitorado numa área em que o petismo é abominação. Não só o patrão pensa assim, o empregado também. O resto da cidade idem. O comentarista vive nesse "Brasil profundo" e sabe ser uma exceção.

Quando você faz as contas, o resultado bate tanto com as pesquisas estilo Foice como o empate entre os evangélicos ontem mencionado. Ou seja, não bate. Será que isso mostra apenas que essas pesquisas são direcionadas, fraudadas? Ou haverá outro motivo? Qual seria este?

Uma possível resposta está no próprio comentário. Mesmo frente a um interlocutor isolado, o "bolsonarista" não abre logo seus valores morais, evita o confronto nesse setor, mantém a supracitada face social. É natural, se todos são um pouco assim é de se esperar que o conservador o seja um pouco mais.

Seguindo essa linha de raciocínio, devido às perguntas prévias, ao receio de que estas se tornem mais pessoais e ao clima geral da entrevista com o pesquisador da Foice, o evento pode se enquadrar na mesma situação e gerar respostas distorcidas.

Pô, mas o entrevistado não dá seu nome e sabe que não será identificado por ninguém. Pois é, as donas de casa que responderam ao anúncio do jornal também sabiam.


Nenhum comentário:

Postar um comentário