domingo, 3 de abril de 2022

Dançando às margens do Reno

Gosta de falar mal do baile funk? Cada época com sua loucura, entre os séculos 14 e 16 os europeus foram tomados por um desejo maníaco de dançar, às vezes às centenas e até cair ou morrer. Doença? Influências demoníacas? O que teria causado esse fenômeno tão bizarro? É o que Helen Carr pergunta em artigo da BBC History.

A praga da dança medieval: o que levou as pessoas a dançar até a morte?

Na Estrasburgo de 1518, Frau Troffea saiu de casa e foi para uma ruela próxima. No início, ela atraiu pouca atenção dos vizinhos que cuidavam de seus afazeres diários. Mas isso mudou quando Frau Troffea começou a dançar. Não havia música, nem seus movimentos eram contidos ou autoconscientes. Mas ela dançou com um tipo de loucura imparável. E contagiosa. Primeiro, um punhado de espectadores se juntou à rave improvisada. Depois uma multidão. Frau Troffea acabou acompanhada por quase 400 foliões, dançando pelas ruas em uma exibição vertiginosa de membros se debatendo e corpos girando. Por mais estranhos que pareçam, os eventos de 1518 não foram únicos. As crônicas dos séculos 14 a 16 estão cheias de relatos de pessoas dominadas por uma compulsão para dançar em toda a Europa central. E elas faziam isso às centenas, às vezes até a morte por exaustão.

A dança de São João - as pessoas clamavam por João Batista enquanto dançavam - traumatizou os espectadores e desencadeou a reação de um clero horrorizado e confuso. Hoje, meio milênio depois, os cientistas ainda estão intrigados com suas causas.

Uma reação à praga? A dança medieval da morte talvez seja uma consequências da maior catástrofe da Europa. Nas décadas de 1340 e 1350, a Peste Negra se espalhou pelo continente e matou até 60% da população, exterminando comunidades inteiras e causando fomes devastadoras. Na sequência desses horrores, flagelantes percorriam as ruas de vilarejos, vilas e cidades, cantando e se açoitando em um desespero nascido da perda, fome e temor a Deus. Então, em 1360, em Lausitz, na fronteira com a Boêmia, algo ainda mais extraordinário aconteceu. Um registro da cidade descreve mulheres e meninas "loucas", dançando e gritando pelas ruas ao pé da imagem da Virgem. A mania da dança de Lausitz diminuiu rapidamente. Mas, 14 anos depois, o fenômeno voltou numa escala muito maior. Naquele verão, multidões correram para as cidades ao redor do Reno, incluindo Aachen, e começaram a pular diante do altar da Virgem.

Como seus antecessores em Lausitz, esses dançarinos se moviam de modo incoerente e frenético, marcado por torções, saltos e giros maníacos. Logo ficou claro que suas ações eram menos uma expressão extravagante de alegria do que uma mania virulenta e incontrolável, que dominava mentes e corpos.

Chamaram-na "coreomania" (junção das palavras gregas para dança e loucura). E o monge e cronista Petrus de Herenthal descreveu as pessoas dominadas por ela como "tão atormentadas pelo diabo que, em mercados e igrejas, bem como em suas próprias casas, dançavam e seguravam as mãos umas das outras e pulavam no ar". A descrição do cronista Bzovius foi ainda mais perturbadora. Os atingidos pela mania, escreveu ele, efetuavam "uma fuga louca de suas casas e comunidades" e dançavam até que "caíssem espumando no chão" para então "levantarem novamente e dançarem até a morte, se não fossem pelas mãos de outros bem amarrados”. Orgia sexual Semanas depois dos dançarinos lotarem as ruas de Aachen, outros se reuniram em número muito maior e mais extraordinário numa floresta perto de Trier. Ali, seminus e com coroas em suas cabeças, eles se deleitaram em uma orgia coletiva que resultou em mais de cem concepções. Caídos em resultado de extrema exaustão, alguns dançarinos se contorciam de barriga no chão, ainda arrastando-se com a multidão. Muitos tentaram controlar suas convulsões amarrando-se em linho e batendo em seus torsos com pequenos paus. Num eco assombroso das flagelações de 1349, eles acreditavam que um demônio se movia dentro deles. Tal era a raiva histérica e desenfreada dos dançarinos que em algumas cidades eles passaram a atacar pessoas com roupas vermelhas ou vestidas na última moda. As autoridades de Liège chegaram a proibir a produção de sapatos de bico fino, em voga na época. Aturdido, o clero denunciou os dançarinos como hereges. Muitos foliões foram arrastados para a igreja de Liège, onde derramavam-lhes água goela abaixo. Se isso não funcionasse, os padres tentavam trazê-los de volta ao normal e os submergiam em barris de água. Ou ainda enfiavam os dedos em suas gargantas para purgar quaisquer demônios que tivessem ocupado seus corpos. O que causou a dança medieval da morte? Alguns meses depois de irromper, a epidemia de dança de 1374 parou (e não reapareceu por mais de um século). A igreja concluiu que sua "cura" havia funcionado e declarou que os muitos dançarinos que morreram devido à exaustão ou desnutrição haviam sido vítimas de forças demoníacas.

Mas esse diagnóstico estava correto? As epidemias de dança da Idade Média foram realmente obra do diabo? Nos últimos cinco séculos, inúmeras outras explicações foram apresentadas para explicar por que centenas de pessoas escolheram dançar em frenesi.

Alguns alegaram que os dançarinos eram membros de um culto de dança histérica; outros que sofriam da Dança de São Vito, um distúrbio caracterizado por movimentos bruscos rápidos e descoordenados que afetam principalmente o rosto, as mãos e os pés. Nos últimos anos, procurando respostas nas influências ambientais, os cientistas sugeriram que os pacientes podem ter ingerido um tipo de mofo contendo propriedades psicotrópicas, o ergot, também suspeito de causar a psicose que tomou conta da cidade americana de Salem e levou ao famoso julgamento das suas bruxas em 1692. O problema dessa teoria é a natureza da dança em si. O fato dos dançarinos parecerem estar completamente dissociados de seus corpos – pulando e cambaleando como se estivessem em transe e se submetendo a rigores que nem mesmo maratonistas poderiam suportar – sugere que uma origem psicológica é mais provável que um envenenamento. O rio Reno é sujeito a inundações colossais e no século 14 a água subiu mais de dez metros, submergindo comunidades e deixando um rastro de doenças e fome. Na década anterior ao surto de 1518, Estrasburgo experimentou peste, fome e um grave surto de sífilis. As pessoas estavam tão desesperadas como quando a Peste Negra devastou o continente na década de 1340. Seria esse desespero a causa última de tudo? Em uma época de peste letal, guerras terríveis, desastres ambientais e baixa expectativa de vida, certamente não podemos descartar a ligação entre estresse extremo e a dança de São João. Mas, por enquanto, o que verdadeiramente motivou os que dançavam em êxtase louco às margens do Reno permanece um mistério.

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