sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A origem

Velas infladas, os barcos singravam o Eufrates ao longe. No terraço mais alto do palácio eles os observavam como gostavam de fazer nos cálidos finais de tarde, completamente sós, sem um só escravo para servi-los, ciosos dos segredos sobre os quais nunca falavam em outro lugar. Foi ele quem disse:

- O mercador me observou com demasiada atenção, crês que realmente não desconfiou?

- Não te preocupes, há muito todos te têm por morto. E estás muito diferente. Aliás, devo dizer que prefiro-te assim, de barba crescida e branca.

- Já eu, minha cara "princesa bárbara", preferia os teus cabelos na cor original, negros.

- Pois saibas que há quem goste. Ontem mesmo, quando a cavalaria da rainha desfilou à nossa frente, não houve um único integrante dela que não prestasse atenção em mim. Creio que os cavaleiros preferem as loiras.

- Ora, querida, sabes bem que o motivo é outro, ainda se passarão muitos anos até que um homem não se abale com teus encantos.

Ela sorriu lisonjeada e decidiu envaidecê-lo também. Virando-se na cadeira em sua direção e fingindo o mais vivo interesse, disse-lhe:

- Por falar em encanto, desculpa-me por incomodar-te, mas a inteligência do teu plano me é fascinante. Conta-me tudo outra vez.

- Bem, minha "morte" precisava ser pública, nas encená-la na rua, em meio à turba, seria muito difícil. Foi então que pensei em forjar uma conspiração. Oito senadores de minha inteira confiança reuniram mais 52 que me detestavam. Quando eles me atacaram, os oito me cercaram e fingiram me apunhalar enquanto mantinham os demais à distância e eu me cobria com a toga forrada com uma grossa camada de couro. Foi tudo muito rápido. E depois bastou colocar o corpo do escravo-sósia que eu sempre mantive escondido para uma eventualidade dessas em meu lugar.

- Que incrível! Uma conspiração fueken, facadas fueken!

- Como?

- Fueken. Significa falso na língua dos bárbaros. Tive que aprendê-la para me apresentar como princesa deles, lembra-te?

- Sim, claro, tu também executaste tua parte com perfeição.

- Para mim foi mais fácil, só tive que fazer a escrava-sósia entrar pela passagem secreta do palácio e depois sair de lá usando o velho truque, enrolada no tapete. Só lamento pelo pobre Marco Antonio. Não entendo por que foi necessário fazer parecer que ele seria teu herdeiro por tanto tempo se o objetivo sempre foi entregar o poder a Otávio.

- Era preciso, querida, confia em mim. Meus estudos sobre a arte da guerra mostraram-me que nada é mais poderoso que afetar a mente humana e esta tem portas que levam a pontos específicos. A falsa facada, colocar um grosseirão popular no comando para depois substituí-lo por alguém aparentemente apagado e sem carisma, todos esses são passos indispensáveis para criar o maior império que o mundo já viu.

- Deves saber o que dizes, és um grande general. Deverias dar um nome à tua técnica e escrever um livro contando tudo sobre ela.

- Já o fiz. Como mescla ações de vários tipos, chamei-a de guerra híbrida. Quanto ao livro, que escrevi na Gália, concluí que a humanidade ainda não está pronta para suas revelações e o escondi numa aldeia da Helvétia antes de atravessar os Alpes. Talvez alguém o encontre daqui a uns dois mil anos e consiga entender como essas coisas funcionam.

- Dois mil anos! Lembrarão de nossos nomes nessa época distante?

- Sabe-se lá. Bebamos outro copo enquanto estamos aqui e deixemos o futuro aos deuses.

- Gostaste do vinho?

- Sim, excelente.

- Era por isso que o mercador te observava, queria saber se o havias provado e apreciado. Mas eu conheço teus gostos e o comprei mesmo assim. Queres que mande servi-lo no jantar?

- Ótima ideia. Ordena também que preparem rouxinóis recheados com tâmaras, creio que combinarão bem com ele.

- Assim farei, meu senhor - disse ela levantando-se para sair.

Mas uma imagem a reteve. A noite já havia caído e um último barco passava, iluminado pelo luar. Seu coração apertou-se levemente quando ela não conseguiu deixar de imaginar, por um rápido instante, que poderiam existir pirâmides na outra margem.


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