- Deixa ver se eu compreendi, seu Irineu. A família do seu Jacques foi uma das fundadoras do seu bairro, mas tinha saído de lá. Aí o seu Jacques voltou a morar na casinha que era de seus avós, dois quarteirões abaixo da sua. E o senhor, cuja família tinha uma rixa antiga com a dele, achou que devia expulsá-lo da região.
- Exatamente, seu delegado, era minha obrigação.
- Foi então que o senhor contratou um vizinho de muro do seu Jacques para incomodá-lo, jogar lixo no seu terreno, roubar suas roupas do varal etc. Depois pagou o vizinho dos fundos para fazer a mesma coisa. E ainda se acertou com alguém que morava duas casas do outro lado para jogar pedras no telhado do seu desafeto.
- Isso mesmo. O senhor pode verificar que, como pessoa pacífica que sou, eu fiz de tudo para não me envolver diretamente.
- Mas aí o seu Jacques resolveu reagir. Pegou um por um e deu uma surra nos três. E prometeu bater ainda mais forte se eles não parassem com o que estavam fazendo.
- O senhor viu como eu tenho razão? É o que eu estou lhe dizendo, delegado, esse pessoal é agressivo, é perigoso. Nosso bairro só tem gente boa, não pode aceitar essa família de baderneiros no meio.
- Eu entendi seu ponto, mas convenhamos que até esse momento o seu Jacques estava mantendo uma desinteligência com terceiros sem nenhuma relação formal com o senhor. E mesmo assim o senhor encheu um caminhão de pedras, parou na frente da casa dele e passou a jogá-las pessoalmente no seu telhado.
- Pra aquele safado ver que não me enganou. Ele se acha o espertão, mas eu sei que enquanto batia nos três ele estava pensando em bater em mim. E eu sou calmo e ponderado, mas não tenho sangue de barata. Todos têm seu limite, tem uma hora que a gente estoura, é algo natural.
- Olha, seu Irineu, eu vou fazer de conta que a gente nem teve essa conversa. Eu sou sincero, do ponto de vista legal é o senhor que pode ser acusado de vários crimes, até de formação de quadrilha. Não existe a mínima chance de eu abrir um BO como o senhor quer, sugerindo que lhe deem uma medida protetiva contra o seu Jacques. É possível até que ele lhe agrida e acabe impune, alegando legítima defesa.
- Meu Deus, meu Deus! Não há mais justiça nesse mundo, onde vamos parar? Então um homem não pode mais defender a sua família, o seu bairro? Eu não posso voltar pra casa desmoralizado, sem pelo menos um registro oficial das minhas queixas. O senhor precisa me ajudar.
- Bom, se o senhor se contentar com um documento que não vai servir pra nada, pode ter um jeito. Eu sugiro que o senhor se dirija à delegacia especializada de Ocorrências Não Usuais, que nós chamamos de ONU, e tente abrir seu BO por lá. Eles aceitam quase tudo que os outros recusam.
- Muito obrigado, delegado, tem alguém que eu deva procurar?
- Fale com o Guterrez. Mas vá depois das 16, quando ele solta a última fornada de pão e encerra o expediente na padaria. Ele não larga da sua verdadeira vocação, a ONU é só um bico pra ele ganhar um extra no fim do mês.
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