domingo, 21 de julho de 2024

Simpsons 2

Sentada na mesa da cozinha, ela mirava o vazio. O piso nobre, os utensílios modernos, o acabamento perfeito, a luminosidade perfeita, tudo aquilo que exigira como rainha estava ali, só seu espírito vagava longe, sem rumo, entre lembranças recentes e distantes. Fixou-se, afinal, no dia em que a crise começou.

- Ele me chamou de puta!

- Ah, querida, não leve essas fofocas de jornalista a sério. Eles já nem estão mais falando disso.

- Não estão porque você manda não falarem. E não é fofoca, ele disse mesmo.

- Mesmo que não seja, você sabe que as pessoas às vezes falam as coisas sem pensar e depois até se arrependem.

- Ele não falou sem pensar. E não se arrependeu. Você não vai fazer nada sério!? Exigir que ele me peça desculpas, cortar relações, nada de nada!?

- Ele é meu filho, eu já reclamei com o menino, mas a gente não pode brigar assim de vez com filho, você não entende?

- Eu não entendo porque eu não tenho filho, né? Agora que eu não posso mais ter você me joga isso na cara. Quantas vezes eu falei pra você que eu queria um filho? Quantas?

- Mas meu amor, naquela época ia ser um escândalo. Você sabe como é a política, eu tinha que fazer o tipo de bom chefe de família, bom pai, bom marido...

- Bom marido de outra. E eu era o que nessa história? A amante? A puta?

- Para com isso, meu amor, você sabe que eu fiz de tudo pra você ficar numa boa.

- Fez sim, me colocou numa empresa em que eu, que não fazia nada, tinha que aparecer todo mês para assinar o holerite. E eu ia, sem abaixar a cabeça, fazendo pose de alegre e superior como sempre fiz. Mas por dentro aquilo era uma tortura porque eu via os olhares, os sorrisinhos. Sabe como me chamavam lá? Como seu filho chamou, "a puta do homi". E eu sei quem chamava e você também não fez nada contra eles.

- Mas eu já expliquei pra você que é funcionário concursado. E na vida pública a gente não pode dar bola pra essas coisas. Comigo também acontece, você sabe que vivem me chamando de ladrão.

- Mas você é ladrão. E eu não sou puta.

- Eu não disse que era... Olha, você está muito nervosa, vamos fazer o seguinte, deixa eu resolver os compromissos de hoje que depois a gente arruma outra viagem daquelas que você adora, só hotel de primeira classe, restaurante de alto luxo, vou te levar numa joalheria pra você escolher...

- Taí, taí, está querendo me comprar, está me chamando de puta de novo!

- Minha nossa! Hoje você está impossível. Assim não dá, deixa eu sair que eu já estou muito atrasado e de noite a gente conversa com calma.

Não conversaram. Nem naquela noite, nem no outro dia, nem em dia algum. Ela tentou várias vezes, mas todas acabavam como na primeira, com ele fazendo pouco caso das suas humilhações e daquela dor que, com o tempo, se misturou à raiva. Raiva desse desprezo, raiva dele. Já mal aguentava ouvir sua voz envelhecida e rouquenha. E aí, naquela manhã de domingo, ele entrou na cozinha cheio de pacotes e anunciou:

- Hoje nós vamos comer aquele churrasquinho com gordurinha na farinha e uma carne que é tão especial que vou cortar ela com o punhal cravejado de diamantes que o sheik me deu. Olha que maravilha, depois eu te empresto ele pra você matar umas galinhas e usar nas tuas macumbas, hehe. Mas não esquece de guardar o pescoço e dar pra um pobre, viu?

Ah, não! Não bastava chamá-la de puta, agora ele ia também debochar da sua fé? O chão lhe escapou, uma vertigem a tomou. Só conseguiu lembrar-se daquele dia em que escreveu que tinha saudade de estar de branco e girar, girar, girar. Ela estava de branco. E girou, girou, girou. Sentiu o frio dos diamantes em sua mão, ouviu uns gritos ao longe, mas foi como se estivesse em outra dimensão.

Quando deu por si o punhal ainda pingava, o vestido estava vermelho, encharcado, o corpo no chão à sua frente. Atirou-se numa cadeira. Ouviu o segurança gritando, batendo, pedindo para abrirem. Logo ele entraria, tinha ordem para arrombar a porta se não respondessem. Não havia o que dizer, o que fazer. Sentada na mesa da cozinha, ela mirava o vazio.





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