segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Mundo sem lei

Há quase dois milênios e meio, em 451 AC, as Doze Tábuas foram fixadas pela primeira vez no Fórum de Roma. Reunindo leis e regras processuais que qualquer pessoa poderia entender, elas impediam que, desde então, os patrícios julgassem os plebeus (e, creio, outros patrícios também) segundo uma legislação criada ad hoc na sua cabeça.

Sim, antes disso o juiz romano podia inventar os crimes e punições que desejasse. E se havia alguns imbecis que diziam que ele podia fazer o que quisesse porque era juiz, a maioria era formada por pessoas normais, que percebiam a incoerência de certas decisões e reconheciam a injustiça quando a viam.

Resolvendo o problema, as Doze Tábuas fizeram sucesso. Tanto que o que elas diziam continuou valendo quando os bárbaros invadiram a cidade e as destruíram, sessenta anos depois. E ainda hoje, na civilização herdada dos romanos, você pode pegar um documento e ler as leis que até os juízes devem seguir e citar em suas decisões.

Mesmo quando a turma toma o poder na marra e inventa leis sem perguntar a opinião dos representantes eleitos livremente pelo povo, estas são registradas. Uma ditadura como a cubana pode dar décadas de cadeia para quem protestar nas ruas contra ela, mas isso, por mais desproporcional que seja, está escrito nas leis deles.

Foi preciso esperar que um dos filhotes dessa ditadura chegasse ao poder em outro país para que, aproveitando-se do grande número de canalhas ou imbecis que lhes garante apoio entre parcelas da imprensa e da população, os responsáveis pelo serviço se sentissem à vontade para deixar a milenar formalidade de lado.

Não acredite em mim, leia o editorial de hoje da Gazeta do Povo:

A nova decisão vem repleta de citações (...) repete os clichês cheios de exclamações e negritos (...) e só não consegue fazer o essencial em um país onde vigoram o império da lei e o devido processo legal: citar um único artigo do Código Penal (...) que ****** tenha descumprido.

Quer dizer, agora, na segunda decisão contra o plebeu rebelde, cita o 359, que tipifica a "desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito" e pune com multa ou prisão de até dois anos quem "exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial".

Para explicar melhor aos mais lerdos: primeiro o cara é condenado sem código algum, depois, quando faz algo em desacordo com a condenação irregular, é condenado por "desobedecer" a vontade de quem o condenou. Mas é ainda pior, porque nem mesmo o artigo 359 poderia ser aplicado no caso atual:

(...) não poderia ser investigado nem mesmo pelo crime de desobediência, pois existe jurisprudência do STJ no sentido de que, se a ordem judicial original já prevê punição em caso de descumprimento, fica afastada a incidência do tipo penal descrito no artigo 359 do Código Penal.

E foi justamente o que ocorreu em junho, quando Moraes impôs multa diária de R$ 10 mil caso o influenciador não se calasse. Este é um detalhe processual importante, mas o caráter nitidamente antidemocrático da decisão de Moraes vai muito além do desrespeito à jurisprudência dos tribunais superiores.

Acho que todos sabem de quem estamos falando. É de um sujeito que está tendo sua vida destruída em público por vingança pessoal e/ou para servir de exemplo aos que dizem (apenas isso, nada mais) o que certas pessoas não querem que se diga. Tudo sob o silêncio cúmplice de uns e os aplausos entusiasmados de outros.

Mas é evidente que isso só acontece porque quem comanda o espetáculo sabe que conta com o apoio de outro poder e de mais oito entre dez de seus pares. Se o outro poder ainda estivesse em mãos de quem prezava a liberdade de expressão e o sujeito soubesse que logo não teria mais que seis entre os dez, sua coragem seria bem menor.

Mais uma vez, nossos parabéns aos que, por ação ou omissão, se juntaram aos analfabetos que nem sabem o que fazem e escolheram conscientemente essa situação.


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