sexta-feira, 6 de maio de 2022

Roupa nova, truque velho

Na fábula que inspirou Andersen - já encontrada no Libro de los ejemplos, de 1335 -, só quem conseguia ver a maravilhosa roupa nova do rei eram os filhos legítimos. Meio milênio depois, em 1837, ao dar ao conto sua forma atual, ele captou o espírito de seu tempo e trocou o receio de não parecer filho legítimo pelo de não parecer inteligente.

Já falamos sobre isso no blog antigo. Mais três décadas e Marx lançou O Capital, marco de um movimento que está em linha com esse pensamento na medida em que procura dar ao seu adepto a sensação de saber o que o vulgo não sabe, ser mais inteligente que este.

Outros cento e cinquenta anos e o Ocidente estava intelectualmente dominado pelos herdeiros dessa mescla, pessoas que, em variados tons de esquerdismo e elogiando a inteligência umas das outras, dominavam a comunicação e decidiam que roupas eram bonitas ou não.

Aos demais cabia seguir os padrões por eles definidos. O que muitos faziam com gosto, sentindo-se tão inteligentes quanto essa elite ao repetirem o que dali saía sem nada repassar pelo filtro da própria inteligência. Se os mestres diziam, ponto final.

Foi então que apareceram as crianças. Ou melhor, que a voz delas começou a ser ouvida graças a certas inovações. Cada vez mais delas, cada vez falando mais alto. E cada vez mais delas gritando mais alto que o rei estava nu.

A reação dos alfaiates foi a pior possível. Bastava a criança ruiva constatar a nudez real para que eles acusassem a criança loira de falar besteira, a morena de fazer baderna e a negra de não limpar o nariz. Fugiam do enfrentamento direto tentando subestimar os críticos externos à confraria. E os que os seguiam sem pensar faziam o mesmo.

Ontem tivemos um exemplo disso nos comentários com a apresentação das "provas", oferecidas por um tal Sérgio Rodrigues, de que quem apoia Bolsonaro é fascista. Não dá para tratar de todas, mas uma delas é que os bolsonaristas recusam a modernidade porque pensam que a terra é plana e criticam "a vacina".

Quantos terraplanistas você conhece? Provavelmente nenhum, pois levantamentos mostraram que essa ideia encontra mais adeptos nos grotões mais pobres e distantes, que também são mais petistas. Será que esse exemplo de recusa à modernidade, dado pelo próprio Sérgio, caracteriza realmente o "bolsonarismo"?

Certamente não, é uma roupa inexistente que o alfaiate malandro mente ver no adversário. E que aqueles que se deixam levar pela sua lábia, querendo parecer tão inteligentes quanto ele, dizem bovinamente ver também.

Quanto à vacina, como já foi dito ontem mesmo, seria necessário que as pessoas recusassem todas as vacinas (o que não acontece) para começar a tentar ver nisso uma recusa à modernidade. Mas nem a própria vacina contra a covid foi recusada, praticamente todos os adultos do país se vacinaram e o presidente acusado de ser contra ela foi quem entrou no consórcio mais cedo e mais comprou vacinas quando possível.

Qualquer criança ruiva pode constatar isso com facilidade, basta olhar. Mas o gado conduzido pelo alfaiate prefere acreditar no que este lhe diz do que nos fatos à sua frente. E aqui não se trata de ofensa vazia, esse sim é um comportamento de gado.

O que os alfaiates tentaram vender como recusa à vacina foi, em primeiro lugar, o direito à dúvida. Mancomunados ou manipulados pelos seus fabricantes, eles pretendiam que as vacinas ainda inexistentes fossem tratadas como uma roupa maravilhosa e incriticável. E o que se dizia do outro lado, e acabou se mostrando verdadeiro, é que elas poderiam ter falhas e não atender àquelas expectativas.

Em segundo lugar, havia também a questão ao direito de escolha. Antes da roupa pronta, já queriam que todos fossem obrigados a vesti-la porque essa seria a única alternativa - olha aí a palavrinha de novo - inteligente. E as crianças ruivas queriam ver como era a roupa e se ela não coçava para decidir se a usavam ou não.

No fim, como já foi dito, a imensa maioria usou, o que destrói por si só o argumento de que o pessoal seria contra a vacina. Mesmo que acabasse não usando, isso jamais poderia ser estendido para o restante da "modernidade". Mas se o alfaiate disse que essa roupa invisível existe e você acha que precisa repetir suas bobagens para ser inteligente...


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