Ao contrário do que imaginam os ignorantes politicamente corretos, não são apenas os jovens países das Américas que têm uma "herança de escravidão". Mesmo na Europa, ainda havia escravos numa época relativamente recente. Hannah Skoda, Tutora de História Medieval no St John's College, de Oxford, escreve sobre isso na BBC History.
Como a escravidão prosperou na Europa renascentista "Eu me dei e me vendi, de livre e espontânea vontade, como escravo a Elias, filho de Blásio de Rasto, por quatro moedas e meia de ouro, válidas até a minha morte, para que o dito Elias possa fazer comigo o que bem entender." Este registro de uma troca – anotado em um pedaço de pergaminho como tendo ocorrido em Dubrovnik em 1281 – é um contrato de venda típico, lembrando-nos que a escravidão era um fenômeno comum em todo o Mediterrâneo e no sul da Europa no final do período medieval. Deixa bem claro os horrores da escravidão, mas também é impressionante ver o "eu" da pessoa escravizada. Apesar de se tornar "propriedade", sua voz ressoa ao longo dos séculos. Celebramos com razão as conquistas do Renascimento, mas no final do período medieval o Mediterrâneo era efetivamente uma zona escravista, com pessoas escravizadas transportadas entre todas as suas costas e vendidas em suas cidades, tanto muçulmanas quanto cristãs. Aqueles escravos que trabalhavam nas casas de humanistas proeminentes tendem a ser excluídos dos relatos do Renascimento. Aqui, porém, contarei algumas das histórias de escravos vendidos no sul da Europa. De Dubrovnik, na atual Croácia, ao longo da costa da Itália, do sul da França e da costa da Espanha até o Porto, em Portugal, os arquivos estão cheios de contratos notariais (legais) sobre vendas de escravos. Em 1367, uma mulher chamada Christine foi vendida em Marselha; o comprador disse que ele poderia "tê-la, segurá-la, dá-la, vendê-la, trocá-la e fazer o que quiser com ela". A cidade italiana de Gênova desempenhou um papel fundamental na história da escravidão neste período. No final do século 13, os mercadores genoveses assumiram o controle do porto de Caffa, no Mar Negro (atual Feodosia, leste da Crimeia), e o usaram como um centro de escravos. Eles logo se juntaram a comerciantes de muitas outras cidades.
Pessoas escravizadas de várias regiões – russos, tártaros, búlgaros, turcos, gregos, albaneses – foram vendidas através dos portos do Mar Negro e depois transportadas para o sul da Europa. A partir de 1415, expedições portuguesas à costa oeste da África trouxeram mais escravos africanos para serem comercializados.
E essa história precisa ser acompanhada pelo comércio entrecruzado de escravos entre o norte da África e a Europa ao longo do período. Em Barcelona, 20% das famílias tinham escravos. E em Gênova, acredita-se que as escravas podem ter representado até 10% de sua faixa etária. Este não foi um fenômeno insignificante, em outras palavras. Algumas características se destacam: a maioria dos escravos nesse período eram mulheres e jovens, pelo menos no ponto de compra. E a maioria dos escravizados, em cidades tão diversas como Veneza, Perpignan e Barcelona, foram colocados em trabalhos domésticos. Humanismo e tráfico humano Este foi um período na Itália em que as ideias de liberdade, a nobreza da natureza humana e a importância do bem comum foram discutidas em termos inspiradores pelos humanistas renascentistas. Mas essas também eram sociedades dependentes do tráfico humano e da escravidão. A hipocrisia é marcante, e não escapou inteiramente aos contemporâneos. A cidade de Dubrovnik proibiu o comércio de escravos em 1416 como "vergonhoso, perverso, uma abominação e contra toda a humanidade". Mas não proibiu a posse de escravos, e os comerciantes encontraram brechas.
Afonso X, rei de Castela de 1252 a 1284, aprovou um código de lei conhecido como Siete Partidas, que expressava desgosto com a prática do comércio de escravos. No entanto, esta era também uma região em que as práticas escravistas estavam inseridas nas estruturas sociais. O mais importante, porém, são as experiências das próprias pessoas escravizadas. Temos milhares de contratos de venda de escravos, bem como documentação de litígios, seja quando proprietários e comerciantes discutiram, ou quando escravizados tentaram desafiar suas circunstâncias. Esses escravos lidaram com suas situações com coragem e acuidade, e é vital que ouçamos suas vozes, em vez das tentativas dissimuladas daqueles que ganharam dinheiro com eles para lidar com suas consciências. Aqui estão quatro de suas histórias. Dabraça de Bosna: a escrava que vendeu a irmã Começamos com a história de uma mulher escravizada de Dubrovnik, conhecida na Idade Média como Ragusa. Naquela época, a cidade tinha uma alta proporção de escravos, alguns dos quais eram comercializados no exterior – particularmente via Veneza, já que Dubrovnik fazia parte do império veneziano – e alguns dos quais serviam em casas ragusanas. Uma escrava chamada Dabraça de Bosna aparece nos registros em 1282. Podemos supor que ela tenha sido capturada em uma incursão ao redor de Dubrovnik, porque seu nome dá uma pista de suas origens. E em 1282, Dabraça conseguiu comprar sua liberdade. Tais contratos não são incomuns. Através de um processo conhecido como alforria, muitos escravos se tornaram livres – embora os registros raramente nos digam o que aconteceu com eles posteriormente. Os escravizados no período tinham dois caminhos para a liberdade. A primeira era se um senhor ou senhora escolhesse libertar um escravo; alguns proprietários o fizeram como um ato de caridade cristã – embora observadores mais cínicos apontassem que escravos idosos dificilmente valiam a manutenção de qualquer maneira. Alguns proprietários também libertaram escravos em seus testamentos, novamente em uma tentativa de ganhar crédito espiritual. A segunda rota era os escravizados economizarem seus escassos ganhos e comprarem sua liberdade. Embora os escravos fossem considerados por lei como propriedade, um princípio do direito romano conhecido como peculium permitia que eles recebessem uma ninharia que poderiam economizar. Muitos usaram esses fundos para comprar a si mesmos. O fato de que havia caminhos potenciais para a liberdade não mina o puro horror da escravidão, mas nos mostra as maneiras pelas quais as pessoas escravizadas tentaram administrar suas próprias situações. Porém, não economizando o suficiente para comprar sua própria liberdade, Dabraca vendeu sua irmã. Nesse momento, segundo o documento de alforria, ela ficou livre para "percorrer os quatro cantos da Terra, onde quer que lhe agradasse, livre e libertada para sempre". Em troca, sua irmã foi dada ao mestre para "servir seu dono de todas as maneiras de acordo com seus desejos", uma frase particularmente sinistra. Mas havia um problema: a irmã foi vendida por apenas quatro anos, após os quais ela estava livre para ir. Isso foi um caso de traição ou um poderoso vínculo emotivo levou essas irmãs a se apoiarem nessas circunstâncias terríveis? De qualquer forma, a gestão de seu próprio destino por Dabraça é impressionante.
Theodora e Maria: jovens mães que lutaram
Os laços familiares são evidentes em muitas dessas histórias. Pessoas escravizadas foram brutalmente retiradas de suas casas e separadas de suas comunidades. No entanto, eles ainda encontraram maneiras de manter um senso de família.
A escravidão doméstica das mulheres muitas vezes incluía um elemento sexual, e muitas mulheres escravizadas engravidavam de seus senhores. No direito romano medieval, no direito canônico (o direito da igreja) e nos estatutos cívicos, os descendentes de escravos deveriam herdar o status de não-livre de suas mães. Assim, um nobre marselhês chamado Pascal de Galdis conseguiu comprar uma escrava grávida e seu filho de quatro anos, em 1465, e vender a criança três anos depois.
Algumas mulheres escravizadas encontraram maneiras de contestar essa crueldade. Uma delas era Theodora, que morava em Creta e tinha dois filhos – Dimitrios e Andrônicos – de seu dono, Pietro Porco. Em 1345, Porco decidiu que queria vender os meninos; ele alegou que este era seu direito legal, porque eles haviam herdado o status de escravizado de sua mãe.
No entanto, os magistrados de Creta – que na época era uma colônia veneziana conhecida como reino de Candia – proibiram a venda, observando que as crianças "são e permanecerão livres para sempre".
Outra mulher que morava em Creta, uma profissional do sexo chamada Maria, foi informada de que teria que desistir de seu filho porque o pai era escravo. Mas Maria conseguiu usar a lei a seu favor, levando o caso ao tribunal para argumentar que a criança deveria herdar sua condição de livre. Ela ganhou o caso.
Essa ambivalência legal e social e histórias de mães defendendo seus filhos podem ser encontradas em várias cidades italianas. Mas eles são temperados pelas histórias de partir o coração de crianças que foram separadas de suas mães em tenra idade. Em 1377, por exemplo, uma mulher de Marselha vendeu sua escrava, mas ficou com o filho de um ano que esta tinha.
"Hereges" que conquistaram sua liberdade Há histórias de escravos que souberam usar a lei. Extraordinariamente, eles eram capazes de litigar, e a complexidade das atitudes legais e culturais ocasionalmente trabalhava a seu favor. Às vezes, pessoas escravizadas eram capazes de explorar as hipocrisias no coração da sociedade cristã. Grlica, Stojana e Tvrdislava, três adolescentes escravizadas na Bósnia em 1393, fornecem uma dessas histórias extraordinárias. Segundo o traficante de escravos, elas eram patarenes – membros de uma seita herética na Bósnia. E isso era importante porque o direito canônico da Igreja Católica lutava com a ética de escravizar outros cristãos. Muitos escravos se converteram ao cristianismo durante o final da Idade Média, apresentando um problema às autoridades da igreja. Eles não queriam que as pessoas escravizadas se tornassem livres convertendo-se, pois temiam que os proprietários fossem desencorajados a permitir que seus escravos se convertessem. Mas também decidiram que escravizar os cristãos era errado.
Assim, o direito canônico fez um acordo, decretando que o momento da conversão era crucial. Se um escravo se converteu antes de ser escravizado, a escravização era invalidada. Mas se ele se convertesse depois, aparentemente não havia problema.
Mas como tudo isso se aplica a Grlica, Stojana e Tvrdislava? Essas três meninas encontraram uma força notável para declarar publicamente que haviam se convertido ao cristianismo antes de serem escravizadas. Extraordinariamente, elas ganharam o caso, e, para sua fúria, o comerciante foi forçado a liberá-las.
Antoine Simon: o escravo que escapou para a vitória
Algumas dessas histórias são, à primeira vista, edificantes – mas as pessoas escravizadas trabalharam tanto para contestar suas situações precisamente porque a escravidão era tão horrível. Esse ponto é enfatizado com mais força pelas histórias de escravos que tentaram escapar. Os que tentavam eram geralmente capturados e punidos, em processos que eram documentados.
Um desses casos é o de Antoine Simon, um escravo negro que trabalhou em Barcelona na década de 1440. Escapando de seu dono, um comerciante proeminente chamado Pons Ferrer, Antoine atravessou os Pirineus – uma jornada que deve ter sido aterrorizante - e chegou à cidade de Pamiers, no sul da França, onde a escravidão era contra a lei, e encontrou emprego com um certo Pierre Toc.
Ferrer ficou furioso e perseguiu Simon até Pamiers. Ao chegar, ele entrou com uma ação legal contra Simon e Toc, acusando o primeiro de roubo. Os homens foram convocados perante o tribunal, onde Simon argumentou que sua liberdade era sacrossanta de acordo com a lei de seu novo lar. Toc reiterou esse argumento e enfatizou seu direito de empregar Simon como um homem livre.
O que garantiu o resultado, no entanto, foi a determinação dos funcionários da cidade em enfatizar sua própria independência: era parte de sua identidade cívica defender a liberdade dos habitantes de Pamier. Simon viveu o resto de sua vida como um homem livre.
A maioria das pessoas escravizadas, é claro, nunca conseguiu escapar, e punições draconianas foram impostas àqueles que tentaram. Mas a história de Simon é uma prova da possibilidade. E muitos centros urbanos adotaram políticas semelhantes às de Pamiers. Notavelmente, Toulouse acolheu vários fugitivos da escravidão e algumas outras cidades onde a escravidão permaneceu comum expressaram ansiedade sobre a moralidade da prática.
No entanto, em muitos aspectos, as bases foram lançadas neste período para o desenvolvimento do comércio transatlântico de escravos nos séculos subsequentes. As justificativas religiosas estavam em vigor, e as vantagens econômicas e estruturas legais para tornar os humanos como propriedade foram estabelecidas, mesmo que a escravidão no final do período medieval ainda não fosse totalmente racializada.
Apesar disso, pessoas escravizadas como Simon permaneceram irredutivelmente humanas: corajosas, astutas e determinadas – ironicamente, as mesmas qualidades associadas aos humanistas renascentistas que continuamos a celebrar hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário