segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Esqueceram do pobre

Uma família viaja na véspera do Natal e, em meio à confusão de passageiros e malas do aeroporto, só percebe que esqueceu um filho quando já é tarde demais. Como ninguém pode voltar de imediato, o menino terá que enfrentar sozinho os bandidos que querem invadir a sua casa. 

Como mostra o pano de fundo do filme famoso, os aeroportos lotam nessa época. Imagine então o que deveria ter se passado naquele país em que o bandido garantiu que eles ficariam parecendo estações rodoviárias, tão grande seria o número de pobres que trocaria o ônibus pelo avião em seu desgoverno. 

No entanto, nada disso aconteceu. Eu esperei para ver outros confirmarem, nas redes, que o fenômeno foi geral. Mas nem precisava, sou testemunha ocular, viajei entre duas capitais no dia 24, por volta do meio-dia, e poucas vezes vi os respectivos aeroportos tão pouco movimentados.

E movimentados pelo pessoal de sempre, com cara de classe média pra cima. O que nos leva a perguntar: onde os pobres se meteram? 

Bem, talvez eles tenham preferido continuar no ônibus. Avião é rápido e dá lanche, mas não oferece aquele calor humano dos três cômodos e do vizinho que escuta tudo o que se fala. Só o ônibus permite que os parentes ajudem a botar a mala no bagageiro e a criança abra a janela e saia abanando para a vovó que fica chorando na estação.

A segunda hipótese é derivada da primeira: como o pobre é muito apegado à família e o Natal é uma festa família, pode ser que ele tenha assado uma picanha em casa nessa data e deixado para viajar na próxima semana. Teremos que acompanhar o movimento dos aeroportos no Ano Novo para saber.

A terceira explicação é o excesso de trabalho do descondenado. Quebrando estatais num dia, aumentando impostos no outro e doando dinheiro para artistas milionários no seguinte, ele ainda achou tempo para viajar nababescamente com aquela que o filho chama de puta. Porém, ocupado como estava, esqueceu de levar o pobre junto.

*     *     *     *     *

E ainda tem o exemplo traumático do primo Wellynson. Basta olhar, o aeroporto está cheio de bacanas, um com pinta de herdeiro que vive na farra, outro dando ordens pelo celular, essas paradas. Temendo chamar a atenção dessa turma após ter ganhado uma passagem de avião na rifa, o primo se preparou.

Comprou roupas chiques no crediário, tentou usá-las com naturalidade e procurou não abrir a boca para nada. Prestou atenção no que os outros faziam para fazer igual e passou o resto do tempo fingindo que dormia ou com cara de pensativo que não quer conversa. 

Foi uma tensão constante, a qualquer momento poderiam lhe dirigir uma pergunta e identificá-lo como pobre por um erro grosseiro de português ou algum vício de linguagem, mas finalmente o avião pousou.

Aliviando-se conforme a fila de passageiros avançava pelo corredor, Wellynson chegou à porta de saída com coragem de retribuir o "boa tarde" de despedida da comissária. Mas aí, quando bastava seguir em frente e tirar um dez, o excesso de descontração o traiu. No último instante, virou-se para a moça e soltou: "E desculpe qualquer coisa, viu?"

Obrigado, Caco Antibes.

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